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MARIANA COOKLES

De que maneira você enxerga a importância das políticas de igualdade de gênero para a democracia?

A luta pela inclusão das mulheres na vida pública acompanha o feminismo desde sua primeira onda, no século XIX. Concentrada em sua dimensão liberal, ligada à concessão de direitos iguais para homens e mulheres, como o direito ao voto, as sufragistas iniciaram um longo processo de apontamento para o caráter excludente da democracia e Estado modernos. Hoje em dia, apesar das conquistas pela isonomia, o quantitativo de mulheres atuando em postos decisórios e representativos ainda é extremamente desproporcional em relação à população representada: em 2018, cerca de 66,4% da população brasileira corresponde a mulheres, enquanto ocupamos apenas 10,7% dos cargos na Câmara dos Deputados e 11,6% da liderança em prefeituras. Esta disparidade se insere na agenda contemporânea de estudos sobre representação, democracia e justiça, que ressalta o problema de legitimidade da representação e a resposta, ainda fraca, das instituições à configuração da sociedade atual.

Em termos de políticas promotoras da igualdade, observamos que a Lei de Cotas provocou um aumento da participação das mulheres no Legislativo, mas, ao longo dos anos de sua implementação, foi possível, também, verificar que sua implementação não foi acompanhada de mecanismos de efetividade, como a existência de um sistema de controle eficiente e de condicionantes que permitam o acompanhamento da carreira política das candidatas. Além de os partidos não terem atingido as métricas de recrutamento previstas pelas Lei, o sistema eleitoral (proporcional e de lista aberta) tem apresentado barreiras ainda mais complexas para o sucesso político das mulheres. Em termos da experiência de outros países, já foi demonstrado que as cotas funcionam muito bem como mecanismo de primeiro “empuxo” para equilibrar, entre homens e mulheres, a ocupação dos cargos representativos com resultados positivos no longo prazo. Porém, a aplicação desta, como outras políticas de gênero, devem ser acompanhadas, desde a etapa de formulação, por condicionantes institucionais formais que bloqueiem as “brechas” que impedem sua efetividade, bem como por instrumentos de acompanhamento e responsabilização, que garantam que a implementação esteja de acordo com seus objetivos.


O que fazer para aumentar o empoderamento feminino em órgãos representativos?

Além de medidas institucionais formais, como as citadas cotas, é preciso que haja um esforço geral de promoção da inclusão de mulheres na vida política; não apenas em medidas legais que possibilitem a participação da mulher em cargos representativos, mas também junto à opinião pública. Os cargos públicos de liderança, em especial aqueles vinculados ao Poder Executivo, ainda são relacionados a ligações cognitivas com traços considerados masculinos – como força, agressividade e assertividade –, gerando o fenômeno denominado “incongruência de papeis”. A incongruência acontece quando as mulheres não são consideradas e/ou não se sentem adequadas para realizar determinada atividade profissional ou papel social. É preciso que haja uma desconstrução deste tipo de percepção junto ao eleitorado e aos recrutadores de partidos e cargos indicados, já que a socialização dentro e fora das instituições é determinada em grande medida pelas barreiras que os estereótipos de gênero impõem sobre as mulheres. Além disto, as atribuições da jornada dupla somam-se a estas dificuldades, afastando ainda mais o interesse feminino em participar de fato de posições de liderança. Políticas como a adoção de creches internas às organizações, critérios de paridade salarial e de horas de trabalho, além da instituição de divisões de controle de assédio e discriminação, mostram-se como indutores poderosos à equidade de gênero.

É interessante que frequentemente ouvimos a justificativa de que a mudança na cultura política e de sociabilização só será capaz de modificar esta desigualdade com o decorrer do tempo, mas, quando observamos que existem medidas formais que podem ajudar a reduzir e resolver o problema, passamos a identificar um caráter de intencionalidade sobre o assunto. Ou seja, ainda que o enraizamento cultural da “incongruência” da participação da mulher na vida pública, seja um fenômeno entre os componentes de nossa herança patriarcal, existem alternativas formais, institucionais, para tratar a questão com efeito imediato. Portanto, é preciso que a pauta da representação seja inserida na agenda pública de mudança e reforma institucional do Estado.


A que você atribui a baixa representatividade feminina na política?

A desigualdade enorme que caracteriza nossas instituições políticas está relacionada desde o interesse da mulher em se candidatar, passando pelo recrutamento dos grupos e partidos políticos, e percorre o caminho da candidatura até a ocupação efetiva do posto. As mulheres não só são menos convocadas ou aceitas na etapa de recrutamento, como também recebem valores menores de financiamento de campanha, contam com redes inferiores de apoio interpessoal e partidário. Estes fatores fazem com que a opção por candidatos masculinos seja ligada a uma maior congregação de capital político e de sucesso eleitoral. Além disso, a ascensão na carreira e a execução de uma agenda de liderança é consideravelmente mais difícil para as mulheres. Observa-se, também, que existe uma diferença na métrica de avaliação do desempenho e de responsabilização entre homens e mulheres. Estudos recentes observam que tanto a mídia quanto a opinião pública tendem a culpabilizar as mulheres por falhas políticas de maneira desproporcional aos acontecimentos e à reação correspondente quando o responsável pelo cargo é um homem.


A política nos partidos é desfavorável a uma ampla participação das mulheres?

Em minha perspectiva, sim. Os partidos não só têm deixado de cumprir com os requisitos de cotas para cargos legislativos, como se têm mostrado menos receptivos e favoráveis às candidaturas femininas. Além disto, a associação da participação da mulher a partidos localizados na esquerda do espectro ideológico, também problematiza a dispersão das candidatas e a diversificação do alcance eleitoral. Como citei, a correlação entre ganhos maiores de capital político e volumes maiores de financiamento também problematizam a inserção e o apoio das mulheres dentro das instituições partidárias. A instituição, neste ano, de uma lei que reserva parte dos valores de financiamento para a candidatura feminina foi um grande passo neste sentido. Resta saber se ela será de fato implementada pelos partidos e se haverá um controle eficiente sobre sua efetivação. Ademais, é preciso que hajam mais incentivos que atenuem as barreiras à entrada e participação das mulheres em cargos públicos eletivos.


As mulheres estão mais conscientes na hora de dar seu voto?

Mulheres, hoje, superam os homens em educação formal, o que afeta a chamada qualidade do voto. Também a visibilidade que o movimento feminista tem ganho desde o século XIX tem promovido a (auto)intitulação das mulheres para participação na vida pública. A queda nas taxas de reprodução e o aumento da participação na força de trabalho também são estimulantes para a atenção das mulheres a assuntos políticos, mas, em minha opinião, ainda há um longo caminho a ser percorrido até que as demandas da chamada “agenda feminina” sejam, de fato, reproduzidas pelo instituto da representação. É interessante observar, também, que a percepção das mulheres sobre o que é e o que compõe a política tende a ser diferente daquela dos homens devido às diferenças em características de socialização, educação e cultura. Os esforços que os estudos feministas têm empreendido na construção e revisão epistemológica dos conceitos principais que constituem a política visam, justamente, desconstruir as definições masculinizadas e a apontar outros sentidos que levem em conta as cognições a respeito do que é assimilado como relevante pelas mulheres. Alguns representantes legislativos têm abraçado plataformas de governo mais amplas, que levam esta questão em consideração. Acredito que a inserção de novas interpretações sobre os problemas públicos, mais inclusivas, tendem a prover atalhos informacionais extremamente relevantes para as mulheres participarem não só através do voto, mas também de outros tipos de ações, como o engajamento em movimentos sociais e em fóruns deliberativos.


De que forma o fortalecimento do movimento feminista tem impacto na política?

O movimento feminista tem servido como um canal fundamental de representação de demandas de políticas para as mulheres, não apenas gerando visibilidade para as pautas tidas como “femininas”, mas também atuando como grupo de pressão sobre as agências públicas. Além disso, as organizações do movimento também tendem a atuar como um braço institucional do Estado, elaborando e implementando ações de empoderamento e atenção à mulher. Neste sentido, o papel das ONGs na América Latina tem sido reconhecido, frequentemente, como um dos fatores principais que explicam o aumento da participação das mulheres na vida pública, bem como o crescimento da atenção dos governos às questões relacionadas à vida e experiência das mulheres.


Como você enxerga a representatividade feminina no governo Temer? Há diferença em comparação ao governo Dilma?

Há diferença. Na primeira composição do gabinete de Temer, não houve sequer uma mulher entre os 22 apontados para assumir as pastas ministeriais. Pela primeira vez, desde a década de 1970, as mulheres foram completamente excluídas do ministeriado do governo. Portanto, a gestão Temer se impôs, desde o princípio, sobre um caráter fortemente excludente e incompatível com os avanços das gestões anteriores. Em nota, a ONU criticou o retrocesso da nova estrutura de governo, chegando até mesmo a compará-lo com o gabinete sírio que, apesar de ser composto sob um regime de longa história autocrática, não deixou de incluir a participação feminina no Executivo federal. Apesar das pressões imediatas de órgãos internacionais, bem como de atores políticos, como partidos de oposição e movimentos sociais, o apontamento integral de homens brancos, de idade avançada e, em parte, com histórico de envolvimento em acusações legais destacou o caráter simbólico do novo governo: um governo de elite masculina e branca para a elite masculina e branca. Em tempos de recessão econômica e profunda crise política do maior partido nacional de esquerda, Temer reafirmou o caráter austero e conservador de seu governo não apenas excluindo as mulheres de sua participação, mas também reduzindo o status da agenda feminina/feminista dentro da plataforma de ação; o exemplo mais saliente foi o da redução do Ministério de Políticas Públicas para as Mulheres a uma simples pasta secretarial.

Na contramão, a gestão do governo Dilma contou com o maior número de mulheres presentes nas lideranças dos Ministério – foram 18 mulheres apontadas ao longo dos cinco anos e meio de mandatos. E, embora, ao meu ver, os governos petistas não tenham demonstrado esforços concretos de defesa dos direitos reprodutivos das mulheres, a gestão de Dilma apresentou avanços substantivos tanto de participação – não só através de uma inclusão maior de mulheres, mas também pela ocupação inédita do cargo de Presidente da República por uma mulher –, quanto na promoção da agenda feminina.


Como você enxerga o fato do Ministério de Políticas Públicas para as Mulheres ter virado uma Secretaria?

Como disse na resposta anterior, acredito que foi mais uma entre as sinalizações das prioridades e dos descartes do novo governo conservador: ao reduzir o número de ministérios de 32 para 23, Temer demarcou a regressão da capacidade estatal em esferas específicas de desenvolvimento humano. Por exemplo, a atenção ao controle e responsabilização do Executivo (com a extinção da CGU), à cultura (com a incorporação ao Ministério da Educação) e à promoção de políticas seccionais de igualdade de raça e gênero, com a incorporação de ambas a SPM e a SEPPIR. A redução do status destas pastas foram acompanhadas de cortes nos já reduzidos recursos das instituições, bem como na diminuição da autonomia destas agências para atender e representar os interesses dos segmentos sociais a que respondiam diretamente.

Não é à toa que a mudança institucional figura entre os principais interesses dos estudos feministas sobre as organizações políticas: as transformações das instituições abrem e fecham muitas janelas de oportunidades para participação de grupos tradicionalmente marginalizados. Mesmo após o fortalecimento da legislação de enfrentamento à violência contra as mulheres, a agenda de interesses femininos ainda carecia tanto de reafirmação no tempo, quanto de expansão de atendimento – em pautas como o aborto, por exemplo. A extinção do caráter ministerial da SPM, portanto, reduziu os canais de representação de tais demandas e fragilizou a estabilidade dos avanços da pauta de igualdade de gênero dentro do governo e junto à população.


Em 2016 a primeira presidenta da história do país sofreu impeachment e foi ridicularizada por ser mulher. Uma prática que não é vista em governos chefiados por homens. Como você acredita que os brasileiros têm enxergado a mulher na liderança?

Todo o processo de impedimento da presidenta foi permeado, claramente, por uma punibilidade diferenciada tanto a partir das instituições quanto, e talvez principalmente, pela opinião pública. A violência política baseada em gênero consiste na violação ou negação de direitos políticos e/ou cívicos de uma pessoa ou de um grupo considerado inferior na hierarquia de gênero. No caso de Dilma, a associação da presidência à uma figura feminina despertou inúmeros ataques dirigidos à personalidade e ao corpo da presidenta enquanto mulher. Observamos declarações de agentes de partidos opositores desferidos à “masculinização” da figura da presidenta, à incongruência da mesma para ocupação do cargo (por vezes em um esforço paradoxal de crítica à ausência da mesma masculinização) e à sua suposta inaptidão para orquestrar e representar os interesses da população brasileira. Junto à opinião pública, assistimos à composição gráfica e discursiva de inúmeros ataques à sexualidade da presidenta, seja através de críticas à inadequação de Dilma ao padrão opressivo e categórico de feminilidade, ou de referências ao corpo sexualizado da presidenta. Um exemplo marcante do último foi a confecção e uso de adesivos que reproduziam uma foto de campanha de Dilma editada em uma figura de duas pernas femininas abertas entre as quais se localizava a abertura do tanque de gasolina em automóveis.

Este tipo de ataque não apenas naturalizava uma violência sexual simbólica, como demonstrava a forte associação entre a punição do desempenho da presidenta ao corpo sexualizado da mulher. Cabe lembrar que os escândalos de corrupção envolvendo a gestão petista anterior, nos dois mandatos de Lula, foram quantitativamente e qualitativamente muito superiores aos que observamos na gestão de Dilma, porém o ex-presidente não só sobreviveu politicamente aos escândalos, como mantém-se até hoje com taxas de aprovação pública altíssimas. Em um estudo sobre as reações da população perante crises ou falhas de governos, Carlin (2018) observou que as mulheres são punidas com maior frequência e intensidade do que seus contrapartes homens. A questão da associação cognitiva a padrões de feminilidade e masculinidade ainda marcam de maneira muito intensa a concepção de liderança em postos públicos e privados. Os estereótipos femininos de delicadeza, fragilidade e submissão ainda são postos em contraposição à própria definição dos requisitos de chefia – agressividade, assertividade e autoridade.


O que fazer para melhorar este cenário?

Em primeiro lugar, é necessário quebrar o vínculo conceitual entre liderança e masculinidade, aceitando e perpetrando concepções de gestão mais flexíveis a estilos gerenciais horizontais, participativos e inclusivos. Diversos estudos apontam que homens e mulheres, dadas as diferenças em expectativas sociais e processos de educação e socialização, desempenham estilos distintos de liderança. O problema é que a essencialização destas diferenças, ou seja, a atribuição delas a características biológicas ou “essenciais” dos sexos, coloca as mulheres em uma escala inferior ou negativa em relação a vários postos de trabalho ou lugares sociais. Em segundo lugar, portanto, acredito que o reconhecimento da dimensão de gênero da violência política poderia ser institucionalizado sobre a forma de normas que coíbam as práticas assistidas no caso da presidenta Dilma.


Qual você acha que é a maior peculiaridade do Brasil em relação ao tratamento das mulheres?

O Brasil possui taxas altíssimas de violência contra a mulher, com indicadores ainda mais preocupantes no caso de negras e lésbicas, de óbitos por procedimentos clandestinos de aborto, bem como de representação política e de divisão sexual do trabalho. É difícil apontar uma questão apenas como sobressaliente, mas, o que choca, é que estes índices convivam com uma estrutura constitucional extremamente progressista e neodesenvolvimentista. Ou seja, apesar de termos uma estrutura democrática que, em tese, deveria ampliar os direitos sociais e políticos das minorias marginalizadas, ainda observamos obstáculos imensos à efetivação de suas diretivas. Estes obstáculos à consecução efetiva dos princípios constitucionais de igualdade podem ser classificados tanto formais, pela impermeabilidade das instituições à participação das mulheres e ao não reconhecimento de aspectos importantes da experiência e autonomia feminina, quanto informais, pela própria negativa da sociedade e dos atores políticos masculinos ao tratamento destas questões.

Uma característica que, em minha opinião, salta aos olhos, é a força conservadora que invadiu o funcionamento do legislativo brasileiro. Observamos diversos atores religiosos traduzindo suas convicções morais em apoio ou combate a questões públicas universais de acesso à saúde e igualdade.


De que forma você acha que isso interfere na política nacional?

Eu diria que o principal impacto é a resistência ao reconhecimento de questões fundamentais para a promoção de igualdade de gênero, autonomia e segurança das mulheres enquanto problemas públicos. Além disso, tal estrutura fomenta a já altíssima disparidade de gênero na ocupação de cargos de liderança e cargos representativos, sustentando um sistema excludente que se retroalimenta. A nova onda de conservadorismo que observamos ao redor do mundo nos últimos anos sinalizam o redirecionamento das agendas públicas a questões que excluem grupos marginalizados social e politicamente. No caso do Brasil, os altos índices de desigualdade de gênero tendem a aumentar devido à não efetivação dos direitos das mulheres e ao bloqueio das vias de reivindicação de tais direitos. Um dos exemplos que se destaca nesta estrutura é a ausência de reconhecimento da legalização do aborto como uma questão de saúde pública. Sobre o assunto, observamos que o funcionamento do sistema de crenças e do sistema político ainda moraliza ou transfere para a esfera privada assuntos que, em teoria, cabem ao Estado conduzir de maneira isonômica.

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